domingo, 14 de maio de 2017

Mamã, porque é que os crescidos falam tanto de amor e têm tanto medo de o mostrar? Hoje no jardim vi dois senhores crescidos sentados num banco e pareciam chateados um com o outro, porque não se falaram nunca. De repente levantaram-se ao mesmo tempo e seguiram o mesmo caminho. Que coisa estranha. Eu quando vejo uma menina sozinha no parque, vou perguntar se ela quer ser minha amiga e depois vamos as duas brincar. Às vezes nunca mais nos voltamos a ver, mas sei que ela ficou feliz e isso também é amor, não é mamã?

Sabes, lá na escolinha gosto muito, muito de um menino. Mas não gosto como os crescidos gostam. Eu gosto de verdade. E ele gosta de mim também. Brincamos muito e partilhamos sempre o lanche. Amanhã vou fazer-lhe uma surpresa e vou dar-lhe a pedrinha mais bonita do jardim. Ajudas-me a escolhê-la mamã?

No outro dia vi um senhor velhinho na loja de gelados do sr. António e pediu-lhe o mais delicioso de todos. Até pediu para pôr pepitas de chocolate em cima! Pagou, sorriu e saiu. Ficou sentado à porta muito tempo e nunca comeu, nem um bocadinho. Estava a começar a ficar aborrecida com ele por ter aquele gelado tão delicioso e não o comer... Até que chegou uma senhora velhinha e se sentou ao lado dele. Estavam os dois muito felizes e afinal o gelado era para ela. Nem sabes o sorriso gigante do senhor a olhar para ela, enquanto se lambusava toda. E o beijinho que ela lhe deu no fim, que foi tão grande e barulhento como os que me dás às vezes. Aquilo era mesmo amor, e eles eram muito crescidos. Se calhar só os crescidos mais ou menos é que não sabem o que isso é. Ou se calhar sabem mas esqueceram-se, porque andam sempre a correr e com pressa e depois, quando ficam ainda mais crescidos, muito crescidos e com tempo, voltam-se a lembrar. Tu ainda te lembras do que é amor mamã?

Se não, porque ainda és crescida mais ou menos, vou-te ajudar a lembrar. Amo-te muito mamã. 

sábado, 6 de maio de 2017

À noite de janeiro

Foi assim, apanhados desprevenidos pela noite e um e outro copo de vinho, que o amor apareceu.
Estranhos conhecidos a partilhar palavras de fazer palpitar o coração e brindes ao tudo e ao nada. Tímidos descarados a trocar mensagens escondidas em voz alta. E nasceu então a amizade nua e crua, à primeira vista, sem meios termos. Um dia levava a outro e foram voando, correndo, bem devagar. Em acasos periódicos, mais noites os atropelavam com sentimentos de eriçar o pêlo. Guardavam secretamente os impulsos que matavam para um dia lhes voltarem a dar vida.
Levados pela música e pela multidão, o beijo. Entre a ondulação de corpos na pista de dança, o foco estava neles sem ninguém dar por isso. O chão tremia ao ritmo do batimento cardíaco uníssono dos dois e ficaram. Ali havia o eles e a inexistência do espaço entre ambos. Durante um momento interminável, apenas o que os lábios não podiam dizer e permitiam sentir.
O tempo tinha pressa e eles secretamente apaixonados. No mais profundo dos segredos mantinham o amor que sabiam ter e conheciam-no nos olhos do outro. Deixavam então assim o amor e o que sabiam dele, num nível intermédio entre o que eram e o que viriam a ser. O universo conhecia o óbvio e eles a viver o que a noite e o vinho e a vida lhes continuavam a dar. Sempre o souberam e um negava e um arriscava. Era o medo no meio do que os fazia querer mais que atrasava o inadiável.
A vontade, a oportunidade, a mais que amizade. Lá apareceu a atrasada hora em que o início por fim chegou e continuaram a ser felizes. O evidente a ser revelado nos dois a serem um. Olharam-se profundamente sem a trepidez da exposição excessiva dos sentidos. Agarraram com unhas e dentes o que tinham a manter e estiveram, até o tempo se cansar, a fazer o que melhor sabem. E foi assim, meu amor, que o nosso amor apareceu.