sexta-feira, 29 de maio de 2015

Andas sempre de pasta na mão, cheia de folhas rabiscadas, rasgadas e amarrotadas. O carvão esborratado no branco dá forma a figuras concretas e abstractas. Desenhas o amor, a solidão, a paz e a inquietação. De um traço à toa crias um mundo de criaturas imaginárias. Não há na Natureza aquilo que passas para o papel e tu sabe-lo. Evoluis com o passar dos lápis. Melhoras à medida que os blocos avançam. Todos os dias inventas algo novo, mesmo que não te sintas inspirada. Tiras das mais pequenas coisas o fantástico da simplicidade. Experimentas a novidade, aventuras-te, falhas, rasgas, guardas, fazes bolas e mais bolas de papel e constróis um monte junto ao balde do lixo.
A tua pasta é a tua arca do tesouro. Preciosa. A tua identidade secreta que só dás a conhecer a quem queres. Manténs lá dentro desenhos racionais e irracionais. Desenhas como um artista de nome. És uma verdadeira artista, com o teu nome.

quarta-feira, 27 de maio de 2015

A vida é feita de acasos. É a história irreversível de pessoas como tantas outras que teimam em ser atropeladas pelos efeitos hostis da própria vida. Somos um livro cheio de capítulos intermináveis onde as palavras não são pensadas antes de existirem. Somos um livro de capa rija e opaca, que nada tem a ver com o seu conteúdo. Cada linha, cada parágrafo, cada folha. Cada conjunto de letras forma a nossa história. Define os gestos, palavras, ações e esquecimentos.
Nada acontece acidentalmente. Nem mesmo os acidentes que não sabemos porque acontecem. Tudo ficará registado no calhamaço da nossa existência para que, sem acasos, no fim possamos ter a melhor leitura que alguma vez teremos.

Margarida

Pediste-me para te escrever e não sei que dizer. És tanto que todas as palavras são poucas para que sejas justamente descrita como criatura extraordinária que és. Desde o início dos tempos viciaste-me na tua presença, na tua voz e nas tuas manias. Tens em ti uma imensidão de pensamentos enigmáticos, misteriosos e que sugam a atenção de qualquer pessoa que tenha a valentia de te conhecer. És um novelo de sentimentos, onde todos se tocam intimamente e se entranham uns nos outros. É confuso e é isso que faz querer ir mais além da superfície da tua personalidade.
Não te conheço inteiramente. Nem quero! Mas sei-te. Sei o porquê do teu nome, quantos dias passaram desde que foste concebida, o que esperas do mundo e alguns dos teus medos. É assustadora a alma das pessoas. Nunca saberemos a totalidade dos outros. Ainda bem. Até ao final dos nossos segundos saberei, com toda a certeza, apenas uma pequena parte de ti.
Tens uma beleza única e um jeito intenso de ser quem és. Tornas-te ímpar aos olhos de qualquer um. Ensinaste-me tanto e mudaste-me em diversos aspetos. Parte do que sou deve-se à amizade que mantemos intacta desde o primeiro dia que falámos. Partilhamos tudo o que mais ninguém conhece. Confiamos o que a mais ninguém o fazemos. Vivemos como ninguém vive.
Viciei-me na embriaguez do som das tuas palavras, no oculto do teu olhar, na força dos teus abraços, na veemência dos teus movimentos. Há em ti lágrimas e sorrisos, paixão e sofrimento. Há em ti um Universo. Há em ti, eu. Há em mim, tu.

segunda-feira, 25 de maio de 2015

É suposto

É suposto sentirmos. Amarmos e sermos amados. Magoarmos e sermos magoados. É suposto podermos gritar e sussurrar. Sermos destruídos e construirmo-nos para que sejamos destruídos outra vez. É essa a essência da humanidade. É esse o objetivo de se ser humano. Não devemos evita-lo nem extingui-lo.
É suposto sofrermos. É suposto aprendermos, e reaprendermos, e voltarmos a aprender. Cairmos e tropeçarmos. Primeiro tropeça-se e cai-se, depois anda-se, para que um dia se voe (disse alguém um dia). É suposto sonharmos e levarmos chapadas da realidade. É suposto sobrevivermos aproveitando a vida. E os momentos. E tudo o que é único nela. É suposto cheirarmos o perfume das rosas e o fedor do esterco e sabermos distingui-los. É suposto sabermos. Faz parte de nós, aglomerado de gente igualmente distinta.
É suposto...

"apenas se olharam, olharem-se era a casa de ambos."


(Memorial do Convento)